Sam abriu caminho pela bagunça.
— Você pode mandar uma mensagem para a Stef e dizer a ela que chegamos em segurança? Aproveita para tentar descobrir qual é o plano dela.
Botei a pistola e o DCS do Sam sobre a mesa e mandei uma mensagem do meu. A biblioteca estava aquecida, principalmente após o frio invernal da noite lá fora, mas meu corpo continuava meio congelado e eu não conseguia parar de tremer.
— Da próxima vez que formos obrigados a fugir de casa no meio da noite — falei —, vou me certificar de estar usando algo além de uma camisola fina.
Sam resmungou alguma coisa em concordância e arrastou a mesa para escorar a porta. Ela abria para fora, de modo que a mesa não impediria ninguém de entrar, mas pelo menos retardaria qualquer um que tentasse nos atacar.
Quando finalmente terminamos de barricar todas as entradas, recebi a resposta da Stef.
Lidea, Geral e Orrin estão indo ao encontro de vocês.
Repassei a informação para Sam e digitei:
E quanto aos outros?
Ela não respondeu de imediato. Suspirei e soltei o DCS de novo sobre a mesa.
— Como está a sua mão?
Sam deu de ombros.
— Vai doer por um tempo, mas acho que não está mais sangrando.
— Podemos dar um pulo na ala hospitalar. — Peguei alguns livros e os coloquei sobre a mesa. — Ver se conseguimos arrumar algum analgésico mais forte.
Sam me ajudou a recolher mais algumas outras coisas do chão, abrindo um espaço em volta de uma das poltronas acolchoadas com um cobertor pendurado sobre o encosto. Tudo o que eu queria era me afundar nela, mas…
— Vamos apenas dar um pulo no banheiro e nos limpar — retrucou Sam. — Depois a gente volta para cá. Minha mão vai ficar bem.
Minutos depois, saímos do banheiro com o rosto lavado e os cabelos arrumados. Antes que eu pudesse sugerir que nos enroscássemos na enorme poltrona, um rugido baixo reverberou lá fora.
— O que foi isso?
— Parece um dos drones. Deve ter sido enviado para limpar os detritos.
Enfim a praça do mercado e as ruas seriam limpas. Antes tarde do que nunca.
— Imagino que seja uma sorte eles não terem sido danificados pelo terremoto. Você acha que os drones vão limpar as estradas do lado de fora de Heart também?
— Deveriam.
Isso era uma boa notícia. Sair de Heart e de Range seria muito mais difícil se as estradas estivessem bloqueadas.
Batidas soaram na porta. Ela se abriu um segundo depois, porém tudo o que pudemos ver do outro lado foi escuridão. Dei um pulo para desligar a luz, mas Lidea falou:
— Cuidado. O terremoto arrastou a mesa para cá.
Um pequeno grupo de pessoas aguardava do lado de fora. Lidea e Geral seguravam seus bebês, enquanto Orrin carregava as sacolas.
Relaxei, aliviada.
— Na verdade, quem fez isso foi o Sam. — Aproximei-me depressa para tirar a mesa do caminho. Assim que todos se viram em segurança dentro da biblioteca, nos sentamos em volta do abajur para compartilhar as histórias.
— Mat tentou matar vocês? — Orrin parecia não conseguir acreditar.
— Ele era um dos seguidores de Deborl. — E talvez de Meuric, antes de Deborl. — Acho que ele me atacou uma vez antes.
Orrin olhou de relance para Sam.
— Quando foi isso?
— Lembra quando a Ana ficou desaparecida? — respondeu Sam, e todos anuíram. Na verdade, eu não havia desaparecido, estava dentro do templo, mas graças à mágica do esquecimento que Janan lançara sobre as almas antigas, Sam não fora capaz de lembrar para onde eu tinha ido. Ele tinha dito a todo mundo que eu estava doente enquanto, junto com alguns amigos, procurava por mim.
Gostaria de poder dizer a meus amigos a verdade sobre o templo, mas eles logo esqueceriam, a menos que eu passasse meses relembrando-os sem parar, tal como fizera com Sam. Era melhor não preocupá-los com um conhecimento que eles não conseguiriam reter.
— Bem — continuou ele —, Ana apareceu na praça do mercado certa manhã. Pouco antes de eu a encontrar, alguém a atacou e roubou uma chave, mas ela estava tão exausta e assustada que não foi capaz de identificar a pessoa.
Assenti com um menear de cabeça.
— Agora sei que foi o Mat. Eu o reconheci hoje à noite. — Achei melhor não acrescentar que ele provavelmente estava sangrando até a morte no banheiro do Sam. — Depois que ele nos atacou, mandamos uma mensagem para Stef e viemos para cá.
— O que aconteceu com vocês? — indagou Sam.
Lidea e Geral trocaram um rápido olhar e Lidea disse:
— Bem, começou com o terremoto.
— Ariana não conseguia voltar a dormir — continuou Geral —, de modo que eu já estava acordada quando Stef entrou sorrateiramente lá em casa. Orrin estava comigo. Tivemos que arrumar as coisas no escuro, para o caso de alguém estar vigiando a casa.
Orrin concluiu o relato.
— Fomos até a casa de Lidea e, depois, Stef ativou os drones e disse para virmos o mais depressa possível para cá.
— Muito esperto. — Era exatamente o tipo de plano que Stef bolaria.
— Vocês acham que eles vão atacar as almasnovas agora? — perguntou Lidea. — Achei que o Conselho tivesse prometido protegê-las. Achei que sua apresentação tivesse dado resultado.
Fiz que não e repeti o que a conselheira Sine tinha me dito certa vez:
— Existe uma lei que proíbe as pessoas de tentarem me matar. Assassinatos não são vistos com bons olhos, é claro, mas no meu caso, como eles não sabiam se eu reencarnaria ou não, o Conselho tornou o ato ilegal. A lei se estende às outras almasnovas também, mas Deborl, Merton e os amigos deles não dão a mínima. Eles acham que qualquer punição vale a morte de um de nós. Simplesmente nos querem mortos.
— Por quê? — Lidea apertou Anid de encontro ao peito. — Não consigo entender por quê.
Eu não queria ter que explicar quem era Janan nem a absurda devoção que eles tinham a ele. Não agora. Portanto, dei de ombros e me recostei no ombro do Sam.
— O Conselho está fazendo o melhor possível para proteger as almasnovas, mas a verdade é que eles não vão conseguir. Eles podem criar regras, colocar vigias e prender todo mundo que acham que pode vir a causar problemas, mas sempre haverá alguém, alguma falha na segurança. As almasnovas não estão seguras em Heart. E nem os demais cidadãos.