— Segure firme. Mantenha a pressão.
— Minha mão vai ficar bem. — As palavras foram ditas de modo brusco, como comandos. Como se ele pudesse ordenar aos cortes que cicatrizassem sozinhos.
— Vamos subir e fazer um curativo decente. Não escutei nenhuma viga se partindo, portanto creio que a escada seja segura. — Com sorte, a tubulação de água estaria intacta também. As luzes e tudo o mais pareciam estar em perfeitas condições. Pelo menos isso.
Assim que fiz menção de me levantar, a terra estremeceu e uma explosão ecoou a oeste. Não foi um terremoto, e sim algo mais.
Sam e eu nos pusemos de pé e corremos até a porta da frente, atentos aos cacos de vidro espalhados pelo chão. Ao sair ao encontro da noite, uma lufada de ar gelado açoitou meu rosto.
— Consegue ver alguma coisa? — perguntei.
Ele fez que não.
— Não. Mas o barulho me pareceu uma erupção.
— Não da caldeira. — A caldeira de Range era gigantesca, estendendo-se em todas as direções, e com Heart situada bem no meio. Se ela entrasse em erupção, não sobraria nada da cidade.
— Não foi a caldeira — concordou ele. Passou o braço em volta dos meus ombros e me puxou de encontro ao próprio corpo para me aquecer. — Uma erupção hidrotermal. É como um gêiser, só que maior.
— Maior quanto? — Corri os olhos pela escuridão à nossa volta, mas as nuvens obscureciam a luz da lua. Ainda que houvesse luz suficiente, o muro da cidade bloqueava totalmente o horizonte. A erupção ocorrera fora da cidade, mas podia ter sido bem próximo ao muro. A região toda era pontilhada por gêiseres.
— Depende. Às vezes bem maior. Elas são uma resposta à mudança de pressão no subsolo.
De repente, começamos a escutar um som de coisas batendo contra as árvores e a casa num ritmo estranho. Uma pedrinha caiu do céu direto na minha cabeça.
Com a mão boa, Sam agarrou meu cotovelo e me puxou em direção à casa.
— De vez em quando, as erupções hidrotermais lançam pedras e árvores no ar, mas isso não é muito comum. Só vi duas desse tipo, e foi há muito tempo.
Enquanto ele falava, uma segunda erupção reverberou ao norte, e, em seguida, uma terceira ao sudoeste. O mundo vibrou com o som de coisas voando, batendo e retinindo. Animais ziguezagueavam por entre as árvores perenes, assustados. Pássaros piavam e levantavam voo, mas não havia lugar seguro para onde voar. Uma chuva de terra despencou do céu, como se o planeta tivesse sido virado de cabeça para baixo.
— Entre — mandou Sam, a voz mais dura ao perceber outras pedras batendo de encontro às paredes da casa. — Agora.
— Como isso é possível? — Ao nos virarmos para entrar, um brilho forte atraiu meu olho.
No meio da cidade, o templo de Janan reluzia com uma luz incandescente.
2
INVASÃO
A PORTA DA frente bateu às minhas costas, silenciando a suave cacofonia do mundo que desmoronava lá fora. Abracei a mim mesma enquanto Sam se afastava da luz que incidia da cozinha e parava em meio às sombras.
— Viu o templo? — perguntou ele. — Nunca o vi tão brilhante.
— Vi.
— Você acha que Janan tem algo a ver com isso? — Ele se recostou na parede e deixou a cabeça pender, segurando a mão de encontro ao peito. — Com o terremoto? As erupções?
— É bem provável. — Fui para o lado dele e apoiei o rosto em seu ombro. Sam passou os braços em volta da minha cintura. Pressionei o corpo contra o dele, ciente de que somente nossas roupas de dormir nos separavam. — Estou com medo — murmurei. Era mais fácil ser honesta abraçada a ele no escuro.
Ele apoiou o rosto no topo da minha cabeça.
— Eu também.
— Se a caldeira começar a fazer isso com frequência, talvez o exílio imposto pelo Conselho não seja tão ruim afinal. Provavelmente a coisa mais esperta a fazer é sair de Range. Estou feliz por saber que você vai comigo.
— Irei com você a qualquer lugar, sempre.
Ficamos abraçados ali por um tempo, escutando nossos respectivos corações e o tamborilar dos detritos batendo contra a casa. Tomei cuidado para não tocar nada além dele, principalmente agora que a pulsação de Janan nas paredes brancas estava mais forte ainda.
— Vamos subir e dar um jeito nisso. — Empertiguei-me e aninhei a mão machucada do Sam entre as minhas. A tira de camisola que eu havia cortado estava empapada de sangue.
Ele assentiu e permitiu que eu o conduzisse até o segundo andar. Subimos a escada devagar, testando cada degrau antes de apoiarmos nosso peso sobre a madeira. O exterior da casa não sofreria com o terremoto — Janan jamais deixaria que algo danificasse a pedra branca enquanto estivesse acordado —, porém o interior de todas elas fora construído pelas pessoas.
A escada estava firme o bastante. Nenhuma das vigas de suporte havia rachado.
O quarto dele estava frio e escuro. Formas se destacavam na penumbra: uma cama aconchegante, um armário e uma harpa grande. Seguimos direto até o banheiro e acendi a luz. Nós dois apertamos os olhos ao sermos ofuscados pelo brilho branco forte.
— Sente-se — mandei.
Ele se recostou no balcão da pia enquanto eu fechava a porta e ligava o chuveiro, deixando a água cair o mais forte e quente possível. Um sorriso travesso repuxou-lhe os cantos da boca.
— Ana, não sei se agora é o melhor momento, mas se você quiser…
— Quieto — retruquei com uma risadinha aliviada. Se ele tinha ânimo para brincadeiras, então ficaria bem. — O vapor vai ajudar a soltar qualquer caco que tenha ficado nos cortes.
— Isso não é tão divertido. — Ele fingiu fazer um beicinho, mas desenrolou a tira de pano e lavou o sangue. Encontrei ataduras e pomada, e juntos retiramos os últimos cacos de vidro, enquanto os vapores liberados pelo chuveiro se espalhavam pelo ambiente. O espelho embaçou, e o barulho da água batendo na banheira abafou os ruídos do mundo lá fora.
— Até que a aparência não está muito ruim — observei, espalhando a pomada sobre os dedos dele. A maior parte dos cortes era superficial.